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O ENCANTO DE SER VOCÊ

Alerta de SPOILER


Quem assiste desenhos animados despretensiosamente julgando estar apenas aliviando a mente das questões do dia a dia com um entretenimento superficial vai ter que dar a cada a tapa.

Não é novidade que os estúdios de animação tem vindo com tudo, apresentando mais do que uma diversão para toda a família, mas um tapa na cara, uma espécie de jornada nas questões psicoemocionais do nosso tempo. Seja por uma questão de mercado com objetivo de aumentar a amplitude do público alvo, ou por apuro da formatação desses produtos cinematográficos antes apenas destinado às crianças, a animação passou a ser instrumento terapêutico com conteúdo instrucional e acadêmico.

Assim chegou mais um longa encantado para o público, recheado de questões existenciais e, para minha completa alegria, sistêmica.

A bola da vez é uma reflexão incisiva sobre o valor da nossa existência na figura de uma personagem que se chama, literalmente, Maravilha, mas que não é tratada como uma.

Mirabel, uma jovem pertencente a uma família influente no seu espaço, se vê dissociada da integração familiar por não ter uma característica que referencia todos os integrantes da família: um poder de ordem sobrenatural. Resignada, ela ainda segue tentando adequar-se a um espaço em que é lembrada o tempo todo "não ser seu lugar."

Embora seja claro que a personagem se esforce para lidar com os "deuses do olimpo" sem possuir a "graça", seu dilema corre em silêncio e faz com que se sinta menosprezada em relação aos demais.

O interessante da trama de ENCANTO é que o verdadeiro dom da personagem se mostra o todo tempo, mas não é reconhecido pela família, e nem pela própria personagem.

Uma das músicas dá a dica dos conceitos costurados na trama da obra. A "constelação brilhante" a que se refere a personagem faz referência ao modelo de tratamento terapeutico criado por Bert Hellinger. Apesar de não ser considerado do ponto de vista científico e ser tratado por muitos de forma pejorativa como algo de viés místico, o processo terapêutico traz o conhecimento empírico de diversos ramos da psicologia e antropologia.

Constelação Famíliar ou ainda chamada de Sistêmica encara os conflitos familiares existentes como parte de um desalinho nas 3 leis do amor: pertencimento, ordem e equilíbrio.

O conceito sistêmico permeia todas as relações e seu funcionamento criando uma trama, mesmo que inconsciente, em que o individuo repete um padrão de comportamento conforme a ancestralidade. É o que constumamos chamar, despretensiosamente, de tradição. A partir do momento em que um membro da família é excluído, outro membro, mesmo que inconscientemente, busca honrar a lei do equilíbrio buscando sua reintegração ao sistema. A máxima de "todos somos um" não se refere apenas a um clichê reanimado de grupos alternativos ou ativistas do movimento hippie dos anos 60.

Temos Mirabel reverberando a dor de Bruno, seu tio e precursor. Ele desapareceu por não ter seu dom reconhecido pela família, o que culminou numa desvalorização de sua identidade pessoal. A réplica do sentimento e auto negação de seu próprio dom colocou Mirabel no mesmo sentimento de seu tio, e na mesma visão, tanto na percepção da ruptura existente quanto na busca incessante por sentir-se incluída. Por ressonância, ambos se encontraram, e se reconheceram. Ambos percebiam a fenda que existia no círculo familiar mas não sabiam como resolver. Para manter a fenda outros membros do sistema tbm foram quebrados. Mirabel reconheceu a fragilidade ao visualizar o sofrimento de suas irmãs, Isabella e Luisa, permanecendo num padrão para manutenção de um sistema ruído que não levava em conta a individualidade de ambas. Bruno, ascendente de Mirabel, fugiu. Ele "preenchia" a fenda. Ela, ao contrário, resolveu quebrar o ciclo encarando a fenda para provocar o alinhamento do sistema, mesmo que com isso fosse necessário aceitar e causar a ruptura. Nesse contexto de busca por si, a sistêmica mostrou que a rachadura começou no início do estabelecimento sistêmico, representado por sua avó e matriarca, por medo e apego.

Ao encarar a fenda na Casita, Mirabel traz a tona não apenas a dor de Bruno, mas tbm a de sua avó por temer perder novamente a "proteção" que veio às custas da vida de seu marido. Com o sistema colapsado, Casita ruiu.

O processo de colapso é a premissa para a reconstrução. Toda estrutura que se mantém com fendas e desequilíbrios suprimidos as custas, mesmo que seja, de apenas um integrante, trara a tona situações disfuncionais e sofrimento compartilhado. Essa situação é bem representada com a intervenção de Bruno ao preencher as fendas de Casita. Seu esforço não seria suficiente para evitar o colapso que já tinha envolvido todo o sistema familiar até culminar em Mirabel, que foi o clamor final pela restauração da lei do equilíbrio, mesmo que isso significasse ruptura e reconstrução.

Esse processo é representado lindamente na cena de Mirabel e sua avó nas águas, símbolo do sentimento, quando ela reconhece enfim o dom de sua neta e razão primeira de todo conceito sistêmico, o sentido de pertencimento para a manutenção do equilíbrio individual e a unidade familiar. O voo das borboletas nessa cena além de representar os integrantes da malha familiar, remonta o efeito borboleta onde nossas ações reverberam no sistema familiar de forma amplificada. Assim como o bater das asas de uma borboleta produz um furacão.

A cena final coloca a família Madrigal no centro de outro sistema. Reafirma, mais uma vez, a ideia de unidade e micro e macro sistemica. A palavra que dá nome à família remete a etmologia " matricale" que significa canto popular materno. As referências ao poder maternal e sua influência sobre os sistemas é magnífico ao ver a comunidade dar forma a casa da família mãe.

Por fim, o conceito de pertencimento ganha contornos evidentes na representação da música final quando há a consciência sistêmica de inclusão de todo ser como parte do todo, família, comunidade. Por fim, a cena final tem Mirabel sendo conduzida por todos ao seu lugar. Obedecendo a ordem perfeita da lei hierárquica ela é conduzida à casa: primeiro pela família ( é bom ver vc brilhar), irmãs (achar o seu lugar), seus pais (você tem que enxergar), por seu tio(você é o nosso milagre, pode entrar) e então sua avó. Na cena, Mirabel recebe simbolicamente da origem, a matriarca, o acesso à "casa", à inclusão, com a maçaneta que leva a inicial do seu nome. Ela é questionada pela avó com uma pergunta chave "procure ver, o que você vê?"

O apelo ao autoconhecimento como processo imprescindível do entendimento sistêmico conduz ao fechamento preciso do arco de cura sistêmica: o reconhecimento do meu todo individual como parte integrante do todo social.

Assim se torna completo o ENCANTO de ser você colaborando num sistema complexo e preciso onde ninguém pode deixar de fazer parte do todo, e esse todo conspira em favor de trazer todos à inclusão, sem a qual não há equilíbrio.



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